A partir da manipulação de macromoléculas, pesquisadores da Embrapa Instrumentação (SP) extraíram
nanocristais de lignocelulose (LCNCs) da palha da cana-de-açúcar, um resíduo
ainda pouco explorado, mas com elevado potencial para a sustentação futura de
biorrefinarias. Da palha é possível produzir etanol de segunda geração e o
estudo demonstra que ela também pode ser usada como matéria-prima para obtenção
dos chamados greens
materials (materiais verdes), provenientes de fontes
renováveis e sustentáveis, de alto valor agregado.
Semelhantes a grãos de arroz, mas com espessura cerca de 200 mil
vezes menor, os nanocristais de celulose (CNCs), também conhecidos como whiskers, são candidatos
importantes para substituir alguns produtos de base petroquímica, com potencial
de aplicações que variam de medicamentos a dispositivos eletrônicos, produtos
de consumo, sensores, aerogéis, adesivos, filtros, embalagem de alimentos,
engenharia de tecidos, entre outros.
A nanocelulose na forma de nanocristais ou nanofibras pode
melhorar as propriedades dos materiais, aumentando a resistência mecânica. “Os
nanocristais servem como aditivos, melhorando as propriedades dos materiais
usados em embalagens e filmes, por exemplo”, explica a pesquisadora da Embrapa Cristiane Sanchez Farinas, coordenadora da
pesquisa.
A conversão da palha em CNCs ocorreu por meio de uma combinação
de pré-tratamento com solvente orgânico e hidrólise ácida realizada em
diferentes condições operacionais. Os pesquisadores constataram que os
LCNCs obtidos da palha da cana-de-açúcar, um material abundante, apresentaram
alto rendimento e estabilidade térmica, além de índice de cristalinidade de
80%, enquanto o material precursor ficou em 65%.
O grau de cristalinidade é um parâmetro importante da
nanocelulose, porque determina as propriedades físicas, mecânicas e químicas
relacionadas à estrutura de estado sólido.
Em 2020, a produção de cana-de-açúcar estimada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi de 677,9 milhões de toneladas. O
estado de São Paulo foi o destaque em área plantada, com cerca de 5,6 milhões
de hectares, o equivalente a 55% do total no País. A palha da cana é um
dos principais resíduos de biomassa lignocelulósica gerados nas usinas
brasileiras de açúcar ou etanol, estimado entre 10 e 20 toneladas de matéria
seca por hectare anualmente.
Esse volume representa cerca de um terço do total de energia
primária da cana-de-açúcar, o que torna o resíduo uma fonte alternativa
renovável e sustentável aos combustíveis fósseis, principal fonte energética
mundial, responsáveis em grande parte pelas emissões dos gases causadores
do efeito estufa. De 1998 a 2018, as emissões globais de CO2 relacionadas
à energia aumentaram 48%, de acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA).
Processo desconstrói moléculas
A pesquisa emprega saberes técnicos-científicos de várias áreas do conhecimento, como Química e Engenharia de Materiais, além da infraestrutura instalada, principalmente, do Laboratório de Agroenergia e do Laboratório Nacional de Nanotecnologia Aplicado ao Agronegócio (LNNA), sediado em São Carlos (SP) na Embrapa Instrumentação. O trabalho foi conduzido pelo químico Stanley Bilatto com supervisão de pesquisadores da Embrapa.
Embora
a plena utilização da palha possa reduzir o volume de resíduos gerados, a
pesquisadora Cristiane Farinas (foto
à esquerda) afirma que o processamento industrial de material
lignocelulósico não é uma tarefa fácil, uma vez que os componentes estão
firmemente incorporados na célula da planta o que dificulta o acesso aos
reagentes necessários para uma separação eficiente.
“A lignina é uma macromolécula complexa que, juntamente com a
celulose e a hemicelulose, formam a parede celular das plantas, proporciona uma
estrutura rígida para proteger essas plantas das intempéries, insetos e
doenças. No entanto, foi demonstrado que a presença de lignina residual em
nanocristais e nanofibras de celulose pode melhorar a compatibilidade química e
as propriedades físicas e mecânicas desses materiais, ampliando a gama de
aplicações”, explica a pesquisadora.
O pesquisador Marconcini acrescenta que, devido à
natureza complexa da lignina, vários pré-tratamentos para a despolimerização do
material lignocelulósico foram propostos, a fim de tornar as cadeias de
celulose mais acessível para o isolamento de nanocristais. A palha
da cana-de-açúcar contém cerca de 40% de celulose, 28% de hemiceluloses,
21% de lignina, 11% de material extraível e 7% de cinzas.
“Considerando a variabilidade da biomassa lignocelulose, cada
tipo pode exigir pré-tratamento específico e condições de hidrólise para se
obter material nanocelulósico, que pode diferir em termos de cristalinidade,
dimensões dos nanocristais (largura, comprimento, e relação de aspecto) e
rigidez”, esclarece Marconcini.
Para alcançar, então, as propriedades finais desejadas do
nanomaterial, é importante compreender as mudanças morfológicas e estruturais
que ocorrem durante os pré-tratamentos.
Especialista em polímeros naturais, o pesquisador Luiz Henrique
Caparelli Mattoso conta que o isolamento de nanoestruturas de palha de
cana-de-açúcar despertou a atenção especial do grupo de estudo, devido às
vantagens potenciais desse material.
“Nos preocupamos em compreender as alterações químicas e
estruturais que ocorrem durante a desconstrução da palha da cana e para a
extração de nanoestrutura, por meio de uma combinação de pré-tratamento
organosolv e hidrólise ácida realizada sob diferentes condições”, afirma o
engenheiro de materiais.
Os pesquisadores trabalharam com palha de cana cedida por uma
usina localizada no interior de São Paulo, lavada, secada, processada e
fracionada para obtenção de um material do tamanho de 0,5 mm. O pré-tratamento
baseado no processo organosolv ocorreu em reator aquecido a quase 190ºC e
depois resfriado à temperatura ambiente. A palha da cana parcialmente
deslignificada foi descarregada e separada da fração solúvel rica em lignina
por filtração.
Os sólidos pré-tratados foram enxaguados, secos à temperatura ambiente e armazenados em sacos plásticos antes do uso, sem que fosse realizado nenhum outro processo de branqueamento. Após a etapa do processo de hidrólise, obteve-se o pó de LCNCs por liofilização, que foi armazenado antes da caracterização.
Nanocristais resistentes como
o aço
Os pesquisadores relatam que
entre as vantagens de extrair nanocristais de celulose está o fato de se obter
material altamente resistente como o aço, mas oriundo de fontes sustentáveis
como as fibras vegetais, que podem ser de algodão, eucalipto, de bagaço ou da
palha de cana, cascas de coco e de arroz, entre outras, e até de resíduos
como madeira de reflorestamento descartada pela indústria. “Ainda é possível a
sua adição a outros materiais, mudando suas propriedades mecânicas”, afirma
Mattoso.
As características dos CNC têm atraído indústrias no mundo todo. Somado a isso, os nanocristais incorporam propriedades físicas, químicas e biológicas e começam a ser empregados em diversas áreas. No entanto, existem grandes desafios para sua adoção mais ampla: alto custo, baixa produtividade, longo tempo de produção e ainda pouco material disponível no mercado.
Conceito de biorrefinaria
Para a Agência Internacional
de Energia, biorrefinaria é o processamento sustentável de biomassa em uma
vasta gama de bioprodutos – alimentos, rações, químicos, materiais – e
bioenergia (biocombustíveis, eletricidade ou calor). A definição
de biorrefinaria apareceu pela primeira vez na legislação americana,
na Farm Bill, de 2002, com o significado de instalações, equipamentos e
processos que convertem a biomassa em biocombustíveis e produtos químicos e ainda
podem gerar eletricidade.
Mas há conceitos na literatura que a definem como “o uso de matérias-primas renováveis e de seus resíduos (denominados de forma geral de biomassas), de maneira integral e diversificada, para a produção, por rota química ou biotecnológica, de uma variedade de substâncias e energia, com a mínima geração de resíduos e emissões de gases poluidores”.
Vanguarda na pesquisa
A introdução de novos
materiais nas pesquisas desenvolvidas pela Embrapa Instrumentação teve início
com o pesquisador Luiz Henrique Capparelli Mattoso. O engenheiro de materiais
realizou seu pós-doutorado em Nanotecnologia no Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos pelo programa Laboratório da Embrapa no Exterior (Labex).
Lá trabalhou com o Prêmio Nobel de Química de 2000 Alan MacDiarmid, com quem
publicou dez artigos em revistas especializadas e teve uma patente depositada
nos Estados Unidos envolvendo polímeros condutores.
Os estudos,
realizados desde 2007, criaram a base para o desenvolvimento dos chamados greens
materials, materiais retirados de fibras vegetais como as de algodão e de
eucalipto. As pesquisas demonstram que é possível obtê-los e que eles podem ser
extraídos a partir de fibras lignocelulósicas de bagaço da cana, cascas de coco
e de arroz, algodão, eucalipto, entre outras, e até de resíduos como madeira de
reflorestamento descartada pela indústria.
Em 2019,
pesquisadores da Embrapa e da startup Bio Nano começaram a testar a
produção de nanocristais de celulose (CNC), em escala-piloto, a partir de
eucalipto e algodão. A proposta é escalonar a produção e acelerar o processo de
obtenção de modo economicamente viável.
Nanocristais comerciais já foram empregados
anteriormente em pesquisas com filmes comestíveis, desenvolvidos com diferentes alimentos
no LNNA, além de materiais plásticos e tintas para aumentar a rigidez desses
produtos. A obtenção, com sucesso, de nanocristais com palha de cana-de-açúcar
agrega valor às próprias pesquisas da Embrapa Instrumentação visando ao
desenvolvimento de novos produtos.